Evolução do Cruzeiro como Empresa inaugura Nova Ordem no Futebol Brasileiro

A grande notícia do final do ano no futebol brasileiro é a compra do Cruzeiro SAF.
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Publicado em 27/12/2021 às 10h51

A grande notícia do final do ano no futebol brasileiro é a compra do Cruzeiro SAF, a sociedade anônima criada para tocar o futebol da Raposa, por Ronaldo Fenômeno. A lenda dos gramados retornou para o clube que o revelou, mas agora com status de dono.

Esse acerto foi possível com a Lei 14.193/2021, que criou a Sociedade Anônima do Futebol (SAF). Esse mecanismo facilita a transformação de clubes de futebol em empresas e traz uma série de benefícios, o que inclui a entrada de novos investidores.

Desde então, há um otimismo com o futuro dos nossos clubes e muitos deles já se movimentam para fazer essa mudança. Atualmente, a grande maioria são associações sem fins lucrativos, mas podem adotar um modelo de gestão empresarial com a transformação em SAF, que separa o futebol da parte social.

Essa ruptura é importante porque profissionaliza a sua administração. Em vez de dirigentes que pensam na reeleição e tem pouca responsabilidade sobre seus atos, a SAF exige uma governança mais avançada e pensamento de médio e longo prazo. A expectativa é positiva para essa revolução no futebol brasileiro.

É verdade que outros times já funcionam como empresas — casos de Cuiabá e Red Bull Bragantino — mas o Cruzeiro deu o pontapé inicial do novo modelo de clube-empresa no Brasil. Por ser algo novo, naturalmente há muitas dúvidas envolvidas. Porém, é fato também que muitos torcedores enxergam uma luz no fim do túnel para o seu clube do coração.

Como vai funcionar o Cruzeiro SAF de Ronaldo

A criação do Cruzeiro SAF ajuda a entender como os clubes-empresas vão funcionar no futebol brasileiro. O primeiro passo foi a Lei, que criou os dispositivos necessários e as regras para essa transformação. Depois, veio a necessidade de mexer no estatuto para abrir espaço ao novo modelo.

Em 17 de dezembro, a Assembleia Geral do clube aprovou a mudança no estatuto e permitiu a venda de 90% da SAF do clube, que foi criada no mesmo mês.

Anteriormente, o texto previa apenas a venda de 49% das ações, o que na prática o manteria como sócio majoritário em qualquer cenário.

Cada clube pode escolher o percentual que deseja abrir mão, mas números baixos não são atrativos para investidores, porque eles precisam de autonomia para realizar a transformação necessária. E não é obrigatório que apenas um investidor faça a aquisição das ações, que podem ser divididas em partes.

No dia seguinte (18), Ronaldo foi anunciado como o novo dono do Cruzeiro SAF. O investimento será feito pela Tara Sports, empresa criada pelo Fenômeno com sede em Madrid e que foi utilizada também para comprar o Real Valladolid, da Espanha.

Investimento de R$400 milhões no clube

Ronaldo não comprou o Cruzeiro por R$400 milhões, como foi divulgado por algumas fontes. Pelo menos, não de uma vez. Nem todos os detalhes do contrato são públicos ainda, mas o valor não foi pago imediatamente e será investido nos próximos anos.

Portanto, o aporte financeiro de Ronaldo Fenômeno por meio da sua empresa não é somente para contratar reforços milionários. Na verdade, o valor será aplicado na reestruturação financeira do departamento de futebol, que sofre com problemas extracampo.

Além disso, a Tara Sports também assume o pagamento da dívida do clube, que está próxima de R$1 bilhão. Apesar de os valores seguirem ligados à associação, a Lei prevê mecanismos para quitar as dívidas. Com as novas regras, 20% da receita e 50% dos lucros e dividendos da SAF devem ser direcionados ao clube para pagar dívidas.

Outro ponto da lei foi a criação do Regime Centralizado de Execuções (RCE), que une as dívidas trabalhistas e cíveis e permite renegociá-las. Há um prazo de pagamento de seis anos, que pode ser prorrogado por mais quatro se 60% da dívida for quitada no período.

Benefícios da nova lei

Na gestão, uma das questões centrais da SAF é a carga tributária. Como associações sem fins lucrativos, os clubes tinham isenção de alguns impostos (IRPJ, CSLL e Cofins) e pagavam outros com alíquotas menores (INSS e PIS). Para se transformar em empresa, teriam que pagar esses tributos como qualquer outra.

Com a criação do S/A no futebol, o cenário é diferente. Nos primeiros cinco anos, a SAF terá uma alíquota única de 5% sobre a receita bruta, excluída a venda de jogadores.

Depois, a taxa cai para 4%, mas a venda de jogadores é adicionada na conta.

Ademais, existem outros benefícios para esse tipo de empresa, como a maior dificuldade para sofrer penhoras ou bloqueio de receitas e ferramentas para pedir a recuperação judicial. Ao mesmo tempo, as novas empresas criadas são regulamentadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o que aumenta a sua transparência.

Outros clubes estudam adotar o modelo

De fato, a SAF não criou o clube-empresa no futebol brasileiro, mas é um modelo mais amigável do que os já existentes. Até por isso, o Cuiabá, que é um clube de empresários, já fez sua adoção — falaremos dele mais à frente.

Com a lei, o Brasil vira um mercado atrativo para investimentos nacionais e estrangeiros. O futebol é um segmento que movimenta muito dinheiro com a paixão do torcedor e aproveitar a identificação e a marca dos clubes traz boas oportunidades.

Nesse sentido, muitos times estudam ou já iniciaram o processo para criar a sua Sociedade Anônima do Futebol. A lista conta com instituições que também sofrem com problemas financeiros (caso de Botafogo e Vasco) e outras que são estruturadas, mas veem uma boa oportunidade de mercado.

Botafogo

O projeto do Botafogo S/A é antigo, mas com a aprovação da SAF, a tendência é que o clube seja um dos próximos a implementá-lo. Recentemente, a Assembleia Geral alterou o estatuto e abriu espaço para a venda de 100% do futebol, o que deixa a ala social sem participação nessa divisão.

O processo é conduzido pela corretora de valores XP, que também fez a consultoria da negociação entre Cruzeiro e Ronaldo Fenômeno. A decisão de abrir totalmente o capital social é bem avaliada por especialistas e, junto com o acesso à Série A do Brasileirão 2022, deixa o Botafogo em ótima posição para atrair novos investidores.

A expectativa é terminar a constituição da SAF ainda em 2021 e operar com novos investidores no primeiro semestre de 2022. O novo CNPJ será fundamental para equacionar as dívidas do clube e proporcionar uma reestruturação no seu futebol.

Vasco

O Vasco é outro gigante do futebol brasileiro que estuda adotar esse modelo de gestão nos próximos meses. O presidente Jorge Salgado anunciou, em nota nas redes sociais, que contratou estudos para a criação do Vasco da Gama SAF.

Entre outras coisas, os trabalhos são voltados para entender a melhor dinâmica dessa transição, que inclui o detalhamento de contratos, valoração de ativos e como funcionaria essa estrutura administrativa. Uma comissão de acompanhamento do projeto será montada pelo clube.

Na visão do mandatário, o SAF é a melhor forma de unir a reestruturação financeira com os investimentos no futebol cruzmaltino. Na temporada 2021, o Vasco não conseguiu o retorno à Série A e teve resultados aquém do esperado. Agora, luta para retomar o seu protagonismo e vê a constituição da empresa como a saída mais vantajosa.

América-MG

O América-MG foi uma das surpresas positivas do futebol brasileiro em 2021 e conquistou a vaga na Libertadores no ano em que subiu para a Série A.
Agora, a equipe caminha para ser negociada com o bilionário americano Joseph DaGrosa Jr, que já foi dono do Bordeaux-FRA e quer ter um fundo de investimentos em times internacionais nos moldes do Grupo City.

No dia 16 de dezembro, os conselheiros do Coelho aprovaram o início dos trâmites para fazer a conversão em SAF, que pode trazer R$200 milhões em investimentos. Os ativos do clube, como receitas do CT e aluguel de imóveis, devem ficar com a associação.

A ideia do América-MG é começar a transferência dos ativos em janeiro e também retomar a administração do Independência. Ainda não há definição do percentual que ficará com o bilionário americano.

Figueirense

O Figueirense Futebol Clube anunciou a criação de uma nova empresa que segue os princípios da nova lei, após aprovação no Conselho Deliberativo. O projeto ainda será desenvolvido, mas ao contrário dos outros exemplos, a ideia é inicialmente que o clube mantenha 100% desse novo CNPJ.

Na visão dos dirigentes, esse é o caminho ideal para reestruturar a instituição, porque a SAF teria a dívida zerada e teria maior capacidade para investir no seu futebol, além de aproveitar a marca do Figueirense e seus ativos.

Vale o destaque que o Figueirense fez um trabalho inicial de renegociação das suas dívidas, por meio de um Plano de Recuperação Extrajudicial. Assim, eles entraram em contato com credores e apresentaram um plano de pagamento. Os valores viriam da receita da SAF e, no futuro, é possível que haja a entrada de novos investidores.

Red Bull Bragantino e Cuiabá, os clubes-empresas da Série A

Mesmo antes da SAF, existem dois clubes com gestão empresarial que disputam a Série A do Brasileirão: Red Bull Bragantino e Cuiabá.

O projeto da marca de energéticos no futebol brasileiro começou antes do Bragantino, com o Red Bull Brasil em 2007. Porém, sem alcançar seus objetivos, a empresa mudou o foco e adquiriu o tradicional time de Bragança Paulista, com vaga na Série B em 2019, por R$45 milhões.

Em dois anos, a equipe decolou e foi campeã do acesso no mesmo ano, chegou à final da Sul-Americana em 2021 e, nesse mesmo ano, garantiu a vaga direta para a Libertadores. Já foram quase R$150 milhões investidos em talentos de outros clubes, com o objetivo de revender para o futebol internacional.

Por outro lado, o Cuiabá Esporte Clube também surgiu como um clube de futebol “normal” em 2001, mas foi comprado em 2009 pelo Grupo Dresch, que era seu patrocinador principal. As mudanças deixaram o time mais forte e, nos últimos anos, conquistou a vaga na Série A e também disputou a Sul-Americana.

Aliás, o Cuiabá já decidiu pela criação da Sociedade Anônima do Futebol, porque suas regras são melhores para a administração do clube. Apesar disso, não haverá a entrada de investidores externos — a família Dresch segue no comando do clube.

União São João, o primeiro clube-empresa do Brasil

Quem acompanha o futebol há mais tempo vai se lembrar do União São João de Araras, que disputou quatro edições do Brasileirão Série A na década de 90 e também frequentou a elite do futebol paulista. Mais do que isso, ele é considerado o primeiro clube-empresa do futebol brasileiro.

O time foi fundado em 1953 por Hermínio Ometto, que dá o nome ao estádio de Araras. Entre idas e vindas no futebol profissional, alcançou a primeira divisão do Paulistão em 1988, dois anos após a morte do seu fundador.

A decisão de se tornar Sociedade Anônima veio em 1994. O nome foi definido em um dos retornos aos gramados em 1981: Ometto queria batizar o time de Usina São João, nome da sua empresa, mas as regras da FPF não permitiam. Assim, escolheu União São João para manter a mesma sigla: USJ.

O clube rapidamente ficou conhecido como o celeiro de revelações do futebol brasileiro. A estratégia era trazer jovens talentos e revendê-los posteriormente a outros clubes. Foi assim que surgiram Léo (ex-Santos), Romarinho (ex-Corinthians), Henrique Dourado (ex-Palmeiras e Fluminense) e tantos outros talentos.

O mais conhecido foi o pentacampeão Roberto Carlos, vendido por US$500 mil para o Palmeiras em 1992. O clube movimentou bastante dinheiro em seus tempos áureos e conseguiu sucesso nessa estratégia, criada depois que a Família Ometto deixou de financiar o clube. Porém, veio a crise e, desde 2015, o União não entra em campo.

Em 2022, o USJ deve voltar aos gramados. A equipe foi confirmada na Copinha 2022 e Araras será uma das sedes do torneio. Além disso, trabalha para disputar a quarta divisão do futebol paulista. Um verdadeiro recomeço para um time que já esteve na elite do país.

Esperança de novos tempos

O Cruzeiro SAF pode ser o primeiro a dar esse passo, mas com certeza não será o último. Ainda é cedo para entender o impacto da expansão do modelo de clube-empresa no Brasil, mas a expectativa é deixar o nível de competição mais alto, principalmente com times melhor estruturados e com menos problemas financeiros.

De qualquer forma, a SAF deve ser instaurada em dezenas de equipes e aqueles que aproveitarem melhor seus benefícios podem se destacar esportivamente. Em dois anos, o Red Bull Bragantino mostrou que uma boa gestão faz diferença. Só que vale lembrar que apenas transformar o clube em empresa não resolve todos os problemas.